sexta-feira, 26 de março de 2010

As doenças contemporâneas


Processos de dor não são apenas processos de dor. São etapas. Finas etapas da existência humana, degraus para que alcancemos outros espaços. É preciso estar alerta e consciente para os movimentos de reclusão, os momentos de parada obrigatória, de loucura, dor e confusão. Os seus significados sempre aparecem em longo prazo, quase desconexos com o tempo tão duro enfrentado. Nada é óbvio, e nada é simples.

Vivemos num mundo complexo, de doenças complexas e grandes questões camufladas. Vivemos à margem do instinto de ser homem e mulher, dos ciclos da natureza, das vozes que vem de dentro. Não as ouvimos. Nossos ouvidos estão tampados com falsas seguranças e artificialidades. Nossos olhos enxergam até aonde a vista alcança, deixando escapar a imensidão incompreensível da própria vida. Vícios cotidianos nos afastam uns dos outros, e da conexão com o divino que existe em cada um de nós.

Perdemo-nos, com pesar. E não nos damos conta de que criamos, com isso, um mundo de difícil trânsito e atritos corporais. De brigas pelo que não importa. De agressões descabidas. De violência não natural, de crises não pertinentes, de desconhecimento. Adoecemos.

As doenças pungentes do mundo contemporâneo. As novas e poderosas drogas não dão conta de amenizar o dolorido acúmulo interno de desgastes desnecessários. Tampouco de preencher os vazios existenciais. Desgastes de alma não são curados com pílulas mágicas. Elas aliviam a dor física. Mas as raízes de nossas doenças estão bem além. E, para curarmo-nos, é preciso a nudez. É preciso proteção maior do que a que a medicina pode oferecer. É preciso um mergulho intenso nas profundezas, nas entranhas de nossas estruturas - para que possamos emergir com o essencial. E um longo e tortuoso caminho nos espera até lá, até que consigamos fincar o pé em algo nosso - livre, um pouco, da opressão que nos adoece. Um caminho solitário, de descobertas solitárias e reveladoras do medo maior que nos permeia. Mas enfrentá-lo vale a pena. Sempre vale a pena. Senão serão repetidas doenças, repetidos remédios, repetidas consultas e exames com doutores e mais doutores. E a resposta de alívio não chegará.

Estejamos atentos!


E na foto um bom banho de cachoeira, que captei em Pirenópolis.


sexta-feira, 12 de março de 2010

desistências


Nesses dias de estranheza, em compasso de espera, aprendo algo mais sobre mim mesma. Aprendo a parar a minha natureza de vento, a aquietar o corpo e a mente que apresentam sinais de esgotamento.
Começo a acreditar que as doenças são, de fato, processos de transformação. E transmuto-me no meu medo desconhecido de ser, em busca do meu silêncio. Perco a razão dos homens, em busca de minha própria razão desassistida. Solto algumas amarras, e navego tremendo para algum lugar onde possa ver as cores do pôr-do-sol. Hei de chegar, quando for a hora, no meu próprio porto seguro.
E para tanto é preciso desapegar, desistir de algumas coisas, para que - num futuro próximo - outras possam vir. E que venham mais calmas e condizentes com a simplicidade e leveza que a vida deve ter.

Esse trecho de Clarice Lispector veio em boa hora, para me revelar o dom da desistência:

"Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senào através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta, é a glória de minha condição. A desistência é uma revelação"

E na foto as cores do entardecer de Brasília, que tem me acompanhado nesses dias difíceis.

segunda-feira, 1 de março de 2010

O novo feminino


O esgotamento dessa semana me fez pensar no que vem a ser o novo feminino, em tempos atuais. Nós, mulheres, depois de tantos anos de opressão pelo masculino, conseguimos a duras penas respeito e igualdade na sociedade. Uma igualdade ainda desigual, mas que grita alto a injustiça de anos e anos de um masculino exacerbado que ainda se insiste dominante. E esse grito faz eco, deixando para trás o preconceito que ofuscava o potencial feminino e trancava as mulheres às tarefas domésticas e serviçais.


Os bons ventos - impulsionados pelos movimentos feministas e de direitos humanos - trouxeram a mulher para dividir espaço no centro da política, na condução das empresas, nos altos cargos, na coordenação das mais diversas atividades que hoje permeiam nosso tempo. Temos mulheres presidentes, mulheres prefeitas, mulheres empresárias, mulheres aventureiras, mulheres livres. Mulheres bem sucedidas em vários campos, até como solteiras devotas à boa solidão da independência conjugal. Mulheres que se afirmam, que lutam, que falam de igual para igual. E que trazem outros ares para as relações profissionais, diplomáticas, financeiras e afins. Meus olhos brilham e admiram o feminino que vejo crescer, e que desde sempre sonhei em ver florescer ver no mundo.


Mas, respiro intrigada....para onde vamos? Para onde estamos conduzindo nossa essência feminina?

Em meio ao turbilhão de acotencimentos cotidianos, às tarefas contemporâneas que esgotam o tempo atrás de dinheiro e estruturas capitalistas - aqui estamos nós, mulheres, correndo de um lado para o outro com os braços cheios de desafios. Desafios que transbordam e vão além, muito além, do que podiam imaginar nossas avós e bisavós. Desafios que nos levam ao desafio maior de sobreviver o feminino e com ele reinventar o que vem a ser mulher, e viver mulher, nesse mundo de grandes brigas com luvas de chumbo.


E é preciso reinventar. O cansaço do meu corpo me lembra que estou vivendo, como muitas, com saudade de ser mulher, de transpirar meu próprio sangue, de intuir, acalentar, amamentar, cuidar das sementes, dos filhos, das plantas, dos outros. Saudades de gestar e parir, no tempo certo, o que venho a deixar no mundo. Saudades de viver os ciclos, de conviver com o desconhecido que carrego dentro do útero, de ter tempo para os meus - um tempo livre do relógio, capaz de suprir a necessidade da partilha.


Saudades do tempo da cozinha, em que o alimento se transforma calmamente em energia. Saudades de viver a estranheza dos períodos de tensão, de me saber mulher-bicho sem pressa da dor passar. Saudades do amor materno, de ensinar e aprender o que não se lê em livros e não vem escrito na tela do computador. Saudades de dormir sem despertar correndo, de fazer o café-pão-quente, de dar à luz ao meu próprio dia.


Mulheres podem ou não ter filhos nascidos de seus ventres, isso não importa. Todo o feminino é também mãe, e demanda um outro tempo - capaz de viver a incompreensão do amor e a necessidade do cuidar. Todo o feminino é composto de muitas, muitas mulheres numa só - mulheres que choram sem razão e que são brutas com uma terrível sensibilidade incompreensível. Mulheres que precisam de seus tempos não lineares, para além de 8 horas diárias, para que desabrochem a feminilidade que não nasce agendada. Olho ao meu redor, e vejo com tristeza que hoje o tempo mulher é um tempo partido.

A concretude matemática do tempo dinâmico, rápido, objetivo, lucrativo - construído para não se ter tempo sobrando, está engolindo-nos. Ao entrarmos nesse jogo - com o peito estufado - ganhamos nosso espaço com competência, mas o que temos colhido em troca, além da independência financeira e o respeito quase desrespeitoso pela mulher vitoriosa?


Quase sem respirar essa semana, vi meu feminino sufocado lá atrás de mim.Eu, que sempre me quis independente e lado a lado com qualquer masculino que atravessasse meu caminho, vejo hoje a fragilidade das minhas pernas cansadas. E humildemente peço ao homem que me ajude a levantar. Abro os olhos para a minha fragilidade de viver esse tempo presente, com tudo que ele me exige, e peço que essa noção seja meu guia, minha espada e minha força para ir adiante.Saber-me frágil e, ao mesmo tempo, capaz de voar e de carregar o mundo nas minhas asas de mãe, faz com que meu feminino tome fólego para seguir em frente, buscando um novo espaço para ser, em meio aos tantos obstáculos de pedra que tenho que cruzar no meu trajeto diário.


Li num livro de entrevistas com Simone de Beavouir - essa mulher que tanto disse sobre o feminino - que ela não acreditava na mudança da posição da mulher na socidade, antes de haver uma mudança estrutural nesta própria sociedade. Convenço-me de suas sábias palavras. Igualdade e respeito ao feminino só pode existir em um outro mundo possível. E cabe a nós, mulheres, gestá-lo e parí-lo.

E na foto o fogão à lenha de Pirenópolis, que nos ofereceu uma saborosa feijoada cozida no tempo do vapor.