Desculpem-me os sociólogos, filósofos, e acadêmicos que porventura passarem os olhos neste texto, mas me apropriei um pouquinho do termo "plural". Peguei emprestado assim, sem querer, sem conceitos ou lastros, apenas para traçar algumas linhas sobre o que venho pensando sobre a minha família, e sobre as famílias tantas.
"Plural" foi o que saltou na tela branca, foi a ideia de muitos, a ideia de reinventar uma unidade familiar composta de gente de muitos cantos. Foi o termo que me tomou de assalto ao pensar na minha própria família.
A minha família nova, inventada, que venho desenhando em vivências inusitadas e outras nem tanto, escolhidas como uma possibilidade de comunhão para além dos guetos de sangue e dos guetos conjugais. Uma família assim, feita de muitos pares, de amigos surgidos nas esquinas que Brasília não têm, de amigos que estão acoplados em minhas pernas desde que me conheço por gente, de amores fraternos que brotam nos jardins ensolarados que planto nos meus quintais ao longo dos anos.
Mãe, pai, filhos, avô, avó, tios, primos, irmãos, e toda aquela constelação que aparece nos mapas genealógicos. Todos esses que são parte da nossa história arraigada na carne. Sim, são família, e estão lá, sempre, nos galhos da nossa vida. E que bom que eles estão lá. Mas não só, não apenas. Conviver e escolher família em cada passo, em cada parte do caminho, vem sendo uma boa realidade que toco com os olhos bem atentos. E toco junto com aqueles que tive a sorte de esbarrar nesse percurso de beira de rio. Vou somando família, juntando um pouco a cada dia para formar um tesouro, para dividir com quem também escolhe fazer parte dessa coisa toda.
Estar junto, precisar e ser precisada, dividir o cotidiano, as durezas tantas, as poesias tantas, os filhos que crescem - de repente- nos parques em que armamos barracas e inventamos piqueniques. Um cotidiano de enlace, e de divisões de vida. O meu filho e os outros filhos, cuidados com amor de mãe e amor de não-mãe. Com pai que está junto ou com pai que está mais longe, ali presente no meio de tudo. Amor de amigo que ajuda a dar banho, a pegar na escola, a dar comida, lavar a louça, colocar para dormir, varrer a casa depois da festa. O abraço bom que está lá junto com a segunda-feira brava de brigas profissionais, uma palavra na madrugada de dor, aquela ajuda preciosa para terminar um trabalho, ou para levar no aeroporto antes da viagem. E, claro, para brigar de vez em quando, porque não existe família quando não existe briga.
Só e despida do tanto que já soube um dia, eu reinventei. E colhi, como recompensa, uma possibilidade de amenizar o cotidiano e romper as barreiras daquela casa que se fecha ali, naquele lugar do sobrenome comum em que não cabe mais ninguém.
Fecho os olhos e desejo cada dia mais aquela família africana das tribos da Guiné, 40 pessoas vivendo juntas, cozinhando juntas, comendo no mesmo prato com muitas mãos, criando os filhos uns dos outros sem posse e sem dizer "esse é meu". Sim, ele é meu mas também é nosso, ele é um pouco de cada um que lhe dê amor e cuidado. Que lhe ensine a andar por aí e ser uma pessoa melhor. Desejo essa família africana com gente vinda de muitos lugares e realidades, trocando as riquezas escondidas dentro da bagagem.
Penso que a nossa possessividade familiar nos leva a uma sociedade ainda mais individualista. Estamos sempre no nosso espaço delimitado, exaltando os nossos laços e as nossas coisas, os nossos filhos de nome e sobrenome que demarca o território. E assim segue-se o tempo sem disponibilidade para os outros filhos e para os outros espaços partilhados - para além de levar as crianças juntas ao parque no sábado de manhã.
Em tempos de poliamor*, eu também quero uma polifamília.
Cuidemo-nos!
E na foto o auto-retrato de uma parte da família poli-doida.
*sobre poliamor: http://www.clubegloria.com/a-possibilidade-de-amores/