quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Por uma família plural




Desculpem-me os sociólogos, filósofos, e acadêmicos que porventura passarem os olhos neste texto, mas me apropriei um pouquinho do termo "plural". Peguei emprestado assim, sem querer, sem conceitos ou lastros, apenas para traçar algumas linhas sobre o que venho pensando sobre a minha família, e sobre as famílias tantas. 

"Plural" foi o que saltou na tela branca, foi a ideia de muitos, a ideia de reinventar uma unidade familiar composta de gente de muitos cantos. Foi o termo que me tomou de assalto ao pensar na minha própria família. 

A minha família nova, inventada, que venho desenhando em vivências inusitadas e outras nem tanto, escolhidas como uma possibilidade de comunhão para além dos guetos de sangue e dos guetos conjugais. Uma família assim, feita de muitos pares, de amigos surgidos nas esquinas que Brasília não têm, de amigos que estão acoplados em minhas pernas desde que me conheço por gente, de amores fraternos que brotam nos jardins ensolarados que planto nos meus quintais ao longo dos anos. 

Mãe, pai, filhos, avô, avó, tios, primos, irmãos, e toda aquela constelação que aparece nos mapas genealógicos. Todos esses que são parte da nossa história arraigada na carne. Sim, são família, e estão lá, sempre, nos galhos da nossa vida. E que bom que eles estão lá. Mas não só, não apenas. Conviver e escolher família em cada passo, em cada parte do caminho, vem sendo uma boa realidade que toco com os olhos bem atentos. E toco junto com aqueles que tive a sorte de esbarrar nesse percurso de beira de rio. Vou somando família, juntando um pouco a cada dia para formar um tesouro, para dividir com quem também escolhe fazer parte dessa coisa toda. 

Estar junto, precisar e ser precisada, dividir o cotidiano, as durezas tantas, as poesias tantas, os filhos que crescem - de repente- nos parques em que armamos barracas e inventamos piqueniques. Um cotidiano de enlace, e de divisões de vida. O meu filho e os outros filhos, cuidados com amor de mãe e amor de não-mãe. Com pai que está junto ou com pai que está mais longe, ali presente no meio de tudo. Amor de amigo que ajuda a dar banho, a pegar na escola, a dar comida, lavar a louça, colocar para dormir, varrer a casa depois da festa. O abraço bom que está lá junto com a segunda-feira brava de brigas profissionais, uma palavra na madrugada de dor, aquela ajuda preciosa para terminar um trabalho, ou para levar no aeroporto antes da viagem. E, claro, para brigar de vez em quando, porque não existe família quando não existe briga. 

Só e despida do tanto que já soube um dia, eu reinventei. E colhi, como recompensa, uma possibilidade de amenizar o cotidiano e romper as barreiras daquela casa que se fecha ali, naquele lugar do sobrenome comum em que não cabe mais ninguém. 

Fecho os olhos e desejo cada dia mais aquela família africana das tribos da Guiné, 40 pessoas vivendo juntas, cozinhando juntas, comendo no mesmo prato com muitas mãos, criando os filhos uns dos outros sem posse e sem dizer "esse é meu". Sim, ele é meu mas também é nosso, ele é um pouco de cada um que lhe dê amor e cuidado. Que lhe ensine a andar por aí e ser uma pessoa melhor. Desejo essa família africana com gente vinda de muitos lugares e  realidades, trocando as riquezas escondidas dentro da bagagem.  

Penso que a nossa possessividade familiar nos leva a uma sociedade ainda mais individualista. Estamos sempre no nosso espaço delimitado, exaltando os nossos laços e as nossas coisas, os nossos filhos de nome e sobrenome que demarca o território. E assim segue-se o tempo sem disponibilidade para os outros filhos e para os outros espaços partilhados - para além de levar as crianças juntas ao parque no sábado de manhã.

Em tempos de poliamor*, eu também quero uma polifamília.  
Cuidemo-nos!

E na foto o auto-retrato de uma parte da família poli-doida. 



terça-feira, 12 de julho de 2011

um segredo e uma mentira



Às vezes eu penso que tudo bem, que é normal estar assim, perdida para sempre. Sem tempo nem espaço, aberta, em compasso de espera de algo sem nome e sem cor, que vejo crescer dentro de mim. Passo a mão na barriga, acalento o vazio que encontro embaixo da coberta. Respiro com o algo que cresce em tecido conjunto. Não sei dizer se sou eu mesma, ou se é algo mais além de mim.

Só sei que assim é, e que assim seja. Assim meio sem jeito, meio atrapalhado e silencioso, como tudo que gesto para deixar no mundo. Tudo assim meio exagerado, meio poético, meio triste e reticente. E com algumas boas doses de esperança e de cores extravagantes, como as que uso na ponta dos dedos, com vontade de colorir tudo de vermelho vivo, rosa alegre, vinho vibrante - para cintilar os dias que se arrastam preguiçosos. 

Às vezes eu sinto preguiça, como um direito conquistado. Uma enorme preguiça existencial, que se ergue como a sombra imensa da mangueira ao meio dia. Gesto a espera em preguiça. debaixo da grande sombra eu fecho olhos e ouso sonhar, um sonho cansado de acordar pela metade.

fecho os olhos e apenas sinto. é bom sentir. Tudo vivo e dormente, com a barriga grande a espera de. Estico-me na grama sem pressa, e contemplo a dança das nuvens que flutuam em cima da minha cabeça. Vontade boba de flutuar também, de fugir uns 2 ou 3 dias, quem sabe, evaporar para depois materializar de novo, e trazer ao mundo esse tanto que ainda não tem nome. Feito mágica. 

Penso como criança como seria bom poder fazer mágica. Então, por dentro, eu faço. Dou risada sozinha das minhas mágicas inventadas, e das tantas coisas que enxergo assim, quando o céu se abre nesse colorido que imagino vindo da ponta dos dedos, até tocar a nuvem gorda e recheada de mentira. Boa mentira inventada, com gosto de açúcar de caramelo, daqueles que grudam nos dentes.

Às vezes as mentiras são engraçadas. às vezes arrepiam, às vezes choram, às vezes nos fazem amar tanto. E são tão boas, que fico torcendo para que exista mágica capaz de transformá-las em realidade. Bom, como a mágica é minha, e a mentira também, eu invento. Um pó dourado qualquer, uma varinha brilhante, guardada com uma grande chave de tesouro, capaz de abrir o segredo: a realidade pode ser transformada.

Agarro a chave e o segredo grande. A realidade pode mudar. Podem existir tardes doces de sorvete, sono às duas da tarde, sonho de andar junto de mãos dadas e pés entrelaçados a beira mar. Água morna salgada, tecidos com renda florida, amor leve de dia de paz. Criança sorrindo, madrugadas de lua grande, poesias suspensas. 

Solto o pó pelas ruas e banho-me de dourado, com a varinha nas mãos. Sim, a gente também pode fazer mágica. 

Acompanham-se essas as cenas divertidas enquanto cruzo a grande avenida seca, enfeitada com ipês rosados. Os ipês também fazem mágica, e florescem majestosos na época mais dura do ano. Não deve ser fácil fazer flor na aridez de julho no cerrado. Mas as flores caem, rosas arroxeadas, e eu as cubro de dourado. Elas também são mágicas.  

Ando de um lado ao outro do grande eixo, a chave pendurada no pescoço, as mentiras esparramadas pelo vasto concreto quente do rachar do dia. Os ipês estão lá, e me contam que é possível. Do sul ao norte sinto a beleza das magias, a enfeitar a grande travessia esturricada. 

Em algum momento a trilha muda, e perco os ipês de vista. Sinto medo de perder a chave, de se esgotar o pó mágico, de perder o caminho em que acesso os meus segredos. É tudo tão frágil e tão efêmero, e tão vazio aqui sem o dourado e as nuvens cor de rosa.  

Deixo um sorriso solto pela imensidão de nunca chegar inteira a onde se espera, de nunca saber ao certo quando será possível transformar a realidade. Mas existe a mágica. E eu acredito. 

e a foto também é minha. um ipê inventado de preto e branco.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

dito-não-dito




Às vezes vem um medo de dizer.

Medo de pronunciar com palavras, afirmar, querer com endereço determinado. O não dito é tão vasto, e nele cabe tanta coisa. Tanta coisa que pode ser, e que não se contorna em limites e possibilidades de nãos. Que me extrapola, e me faz quase onipotente diante de tanta grandeza não realizada.

Não dizer me deixa livre, não me compromete com o que amanhã já não for mais. Com aquele que me ouvir dizer, e for atingido por palavras concatenadas. Solta-me para voar, e para estar sempre só com essas tantas coisas minhas, nunca compartilhadas. Não comprometidas com ninguém, a não ser comigo mesma.

Dizer quase me amarra os pés, parece sufocar o pensamento com frases feitas. Limitadas. Quanto mais real o dito, menos ele cabe na fantasia de céu azul, menos ele voa sem rumo. É como a pipa presa na mão do menino. Voa ali perto, sem possibilidade de adentrar o desconhecido, o impossível, o fantástico sem rumo e sem pé no chão. 

(A menos que bata um vento tão forte que faça a pipa soltar as cordas, ou o menino machucar a mão e soltá-la na imensidão para nunca mais. Sempre existem os ventos, eu sei. Talvez por isso tenha medo de ter uma pipa nas mãos. Melhor nunca ter, do que vê-la partir. Será?). 

Então eu prefiro o não dito. Ou o dito bem floreado, escondido por entre folhas secas que cheiram a alecrim e rosas brancas. O dito cifrado, deitado lá no fundo quase imperceptível, por entre as folhas alvas e o perfume doce.

Um dito que pode ser colhido em forma de beleza, para amenizar o testemunho tão frágil das palavras acabadas. O eu tão frágil que pode ser visto por olhos acordados.  O não dizer me protege, e eu finjo estar protegida. Ele me deixa só aqui nesse espaço indivisível. 

Dizer dá medo, porque existe no espaço compartilhado. Existe vulnerável, nu nesse lugar desconfortável que é estar visível para o outro. 

(Talvez eu tenha medo do outro).

Mas de vez em quando me vem a vontade de dizer. Quando o outro me aparece inteiro e cheio de possibilidades de amor, eu chego a deixar as palavras prontas na garganta. Ensaio, penso em me despir, correr, quase precisar dizer. 

E às vezes digo, lá no meio do encantamento poético com cheiro de alecrim. Às vezes sou vista no meio das árvores grandes de raízes grossas. Apareço e corro, assustada. Volto para onde tenho roupa quente, casaco, solidão protegida. Às vezes quase triste.

(O outro machuca. Esse é um segredo).  

E eu quero te dizer assim, com letras maiores e vibrantes, frases inteiras que me aqueçam e me roubem desse lugar só meu. Tanta coisa não dita que precisa ser solta. Tanta coisa quente que escorre pelos dedos, mas não alcança o teclado.  

Mas por enquanto eu só consigo encontrar flores e mais enfeites com rendas e bordados coloridos. Perfume de jasmim, dama da noite beijando o céu. 

Um sorriso com silêncio dourado e fita amarela, para que você desembrulhe e adivinhe alguns segredos contados em estrelas altas de noite aberta e lua branca. 
A foto também é minha, nascida de um desses momentos de não dizer. 

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Uma breve história de conchas



Era uma tarde daquelas reluzentes do cerrado.

Os amigos reunidos para comemorar uma data especial de aniversário. 4 anos, barrigas, bebês, aquela esperança boa que vibrava nas vidas que ainda estavam por vir. Nas novas vidas que ainda seriam descobertas dentro de cada um de nós. 

Sol e Be se viram depois de alguns dias de distância. Os dois logo se conectaram como irmãos que tem tanto para conversar e descobrir ao longo do dia. É bonito ver como conversam. Como trocam as grandezas que encontram nas miudezas de seus mundos de meninos de pés no chão. Como o diálogo acontece quase sem querer, como quem respira o mesmo ar dentro do peito. Como os significados de seus achados dialogam, e formam conhecimentos conjuntos.

Gosto de acompanhá-los assim à distância, observando o que acontece quando estão juntos. Meu olhar fica ali ao redor, compartilhando seus aprendizados com uma imensa alegria por aprender também. Por aprender a olhar com novos olhos as mesmas velhas formas que me permeiam.

Nesse dia eles encontraram conchas no parque de areia. Be pegou todas que conseguiu enxergar com as mãos despertas. "Mamãe, o que essas conchas fazem aqui?", ele perguntava curioso. "O lugar delas não é aqui! como vieram para cá?". Ele ficou realmente incomodado com a descoberta das coisas fora do lugar.

A ordem das coisas está cheia de desordem filho. Vivemos permeados por desacertos. E tudo bem. Tudo bem as conchas estarem aqui. Tudo bem estar fora do lugar. Tudo bem também inventarmos novos lugares, novos abrigos para coisas diversas. A Sol parecia concordar comigo. Ela gostava de ter as conchas ali perto, como se fossem dela. Como se pertencessem àquele exato lugar onde se encontravam, mesmo que não fosse o lugar onde deveriam estar.

Abrigamos, então. Juntamos todas num copo, cheias de areia e de indagações brandas. De indagações de quem vive atento. Mas o Be não se sentia feliz com as conchas ali naquele lugar improvisado. Ele ficou sisudo, com olhar sério. Queria levá-las de volta ao mar. Elas precisavam voltar para a casa delas, para onde faziam sentido.

Estávamos na beira do lago, e o lago virou mar. Aquele mar grande-mundo, aquela imensidão disforme e cheia de vida. Levamos as conchas descalços, beirando a água gelada com vento bom. Eles queriam molhar os pés. Sentir o arrepio vivo daquilo que viam. E molhamos, arrepiados. 





Ficamos ali contemplando o desconhecido, por um tempo sem tempo. Fitando o destino escuro das conchas que sairiam de nossas mãos para nunca mais voltarem as mesmas. Suspirando a despedida do momento passado que nunca mais voltaria o mesmo. Despedida da vida que segue para onde deve seguir, e nem sempre leva junto o que desejamos levar na bagagem. 

O Be e a Sol dividiram as conchas. Uma a uma pingaram na água, mergulhando no lugar de onde vieram. Parecia certo jogá-las de volta ao lago vestido de mar. O Be sorria, feliz em devolvê-las para a sua vida marinha. "Agora elas vão encontrar os seus irmãos e irmãs, sua família Sol!" - ele exclamou. A Sol voltava calada. Voltamos calados, enfim. 



Até que ela olhou algo no chão de areia: outra concha! "Olha Be, outra concha, outra concha!", gritava animada. Mas o Be não gostou do achado. Ele não gostava de descobrir que sempre haveriam conchas fora do mar. A Sol, por sua vez, não pensou duas vezes: agarrou-se na concha. "Agora ela é minha Be!". 

Ele teve um verdadeiro ataque raivoso, daqueles de bater o pé no chão. "A concha não é sua Sol, o lugar dela é no mar!". "Mamãe a Sol não quer jogar a concha de volta ao mar!" - chorava ele sentido, derrubando lágrimas inconformadas. Filho, deixa a Sol ficar com a concha. Ela quer sentir um pouco o que é ter uma concha junto de si. Deixa ela sentir. Ele pensou, pensou, investigou terrenos, mas não se convenceu: "não, não isso não é certo!", emburrava-se.

A Sol apertava a concha nas mãos. A concha pequena dentro de suas mãos pequenas. A concha acalentada pelo seu mundo novo, pelo mundo dela, por ela que era concha também. "Sil, a concha não tem olhos e nem boca. Ela não pode ter irmãos e irmãs. Ela não é como a gente", afirmava a Sol, querendo convencer-se de que a concha agora deveria seguir com ela.  Que ela lhe emprestaria olhos e bocas de gente. Que ela lhe supriria as faltas que sentiria nesse mundo que não era o dela. 

O dia seguiu. O Be ainda bravo, esqueceu-se um pouco do mundo das conchas em meio a outras brincadeiras e docinhos cheios de açúcar. A tarde caia, e a gente ia se despedindo com a lua que começava a aparecer naquele horizonte sempre aberto. 

De repente a Sol chegou perto do Be. Pegou na sua mão com delicadeza: "Vamos Be, vamos jogar a concha de volta ao mar". "Isso Sol!!", ele esbravejou! Foram os dois de mãos dadas, os dois juntos com a concha acalentada. Era hora. Ela estava pronta para despedir-se da concha que, de fato, não era dela. "É, Be, você estava certo. A concha deve voltar para o mar", ela falava em silêncio enquanto se dirigiam para o mar inventado. 

Ela só precisava de seu tempo para dizer adeus. Precisava conviver um pouco com aquilo que precisava ir. Precisava senti-la por entre seus dedos, e guardar na memória o que era ter uma concha só sua. O que era ter uma coisa de mar junto de si. Precisava do seu próprio tempo para decantar e para deixar ir. E a concha foi. Num só gesto, certeiro, ela desprendeu-se de suas mãos e mergulhou de novo no mar. 



E os dois voltaram ainda juntos, correndo pelos arredores, felizes com a empreitada que realizaram de mãos dadas. 

Eu continuava acompanhando tudo com o coração pulsando. E pensava no dia em que eles encontrariam novas conchas e novas oportunidades de viver e de se despedir do que precisava ir embora. No dia em que de novo sentiriam o que é ter algo que deve partir para o desconhecido. 

Pensava também nas minhas próprias conchas guardadas, que precisavam voltar para o mar. No que precisava desgarrar das minhas mãos atrapalhadas. No meu tempo de deixar ir o que precisa ir. O que, de fato, não cabia aqui junto de mim. 

E eu vou. Quando estiver pronta. Quando conseguir dar o passo em direção ao mar, e me despedir das conchas para nunca mais.

Obrigada meninos, pela grande partilha de coragem. 

As fotos são minhas também. Registro emocionado de uma mãe-aprendiz. 

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Pela dor também?



Abraço a dor. 
Sim, também a dor. Com calma deixo fluir a correnteza. 
Contemplo. 
A passos curtos percorro a trilha que se abre pela mata. 
É tudo tão triste, e tão bonito.
Tudo isso sou eu. 

A Alice Ruiz iluminou meus últimos dias com o texto abaixo. Vivi o sonho, o pássaro morto, e também agradeci. 
Agradeço. 

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PÁSSARO, 
de Alice Ruiz

Preste atenção, ela disse, ao abrir para mim a porta de sua casa: - o que a gente sonha aqui, tende a acontecer. Pensei que é preciso ter coragem para morar em um lugar assim, onde o que se sonha passa a existir. Precisa ter muita certeza do seu sonho.



Mas não lembro o que sonhei porque acordei, abruptamente, com o barulho de um pássaro que voara em direção ao vidro da janela como se ela não existisse. Assisti sua morte, seu canto de morte. Ele saberia? Janelas novas pedindo, urgentes cortinas. Se a casa fosse minha. Mas uma casa pode pertencer a mim, substancialmente? eu mesma, tão passageira entre as coisas passageiras?

Ela disse: - eu agradeço por tudo, o tempo todo. - Pela dor também? Eu perguntei. E ela, em resposta, repetia minha pergunta: - pela dor também?

Quis contar do pássaro morto para lhe dar, além do enterro, um pouco de fama. Fama em vida não é bom. É uma espécie de geografia maldita porque quando você está nela, nenhum coração te alcança. O amor que ela oferece é o que te afasta do mundo. Para aceitá-lo só a submissa doçura de quem já morreu. Mas, às vezes é boa a dor porque nos lembra que estamos vivos. - Sim, eu disse pra ela, eu agradeço pela dor também.

- Eu sei uma dor de amor, ela respondeu como quem quer se livrar dela, e começou a contar: - Um dia, ele percebeu, surpreso, que a intensidade do amor que eu sentia, não podia ser verdade, não por ele. Simplesmente não tinha o tamanho dele. Não alcançava, nem de longe, aquele significado todo. Então voou.

- Então foi isso que você sonhou, eu disse. Ela parecia absorta, mas perguntou: - como era mesmo o pássaro que morreu?

E na foto um pequeno grande feminino captado pela minha lente simples de olhar. 

segunda-feira, 28 de março de 2011

O peso e a leveza



O peso e a leveza. 
Milan Kundera volta a rodear meus dias, com suas indagações sobre essa contradição que tanto nos funda. 
Por tantas vezes já me senti como Tomás, personagem da Insustentável Leveza do Ser, olhando os muros sujos do pátio sem compreender o que sentia, sentindo-se esmagado entre o dilema do peso e da leveza. 

Ao longo da vida divido-me entre pesos e levezas. E hoje não acredito que seja possível escolher entre um e outro. Os dois nos permeiam, sempre, num vai-e-volta de ondas do mar. De ondas de viver assumindo os dilemas e os nossos próprios paradoxos.

Acredito que somos paradoxais. Eu sou.
Aqui vai o Kundera, em sua insustentável leveza.
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Se cada segundo de nossa vida deve se repetir um número infinito de vezes, estamos pregados na eternidade como Cristo na cruz. Essa idéia é atroz. No mundo do eterno retorno, cada gesto carrega o peso de uma responsabilidade insustentável. É isso que levava Nietzsche a dizer que a idéia do eterno retorno é o mais pesado dos fardos (das schwerste Gewicht).
Mas será mesmo atroz o peso e bela a leveza?
O mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, comprime-nos contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o fardo do corpo masculino. O mais pesado dos fardos é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da realização vital mais intensa. Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais real e verdadeira ela é.
Em compensação, a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a se tornar semi-real, e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes.
O que escolher, então? O peso ou a leveza?
Foi a pergunta que Parmênides fez a si mesmo no século VI antes de Cristo. Segundo ele, o universo está dividido em pares de contrários: a luz/a escuridão; o grosso/o fino; o quente/o frio; o ser/o não-ser. Ele considerava que um dos pólos da contradição é positivo (o claro, o quente, o fino, o ser), o outro, negativo. Essa divisão em pólos positivo e negativo pode nos parecer de uma facilidade pueril. Exceto em um dos casos: o que é positivo, o peso ou a leveza?
Parmênides respondia: o leve é positivo, o pesado é negativo. Teria ou não teria razão? A questão é essa. Só uma coisa é certa. A contradição pesado/leve é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições.

E na foto um momento leve que captei nas brincadeiras das crianças aqui da chácara

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

analfabeto de si mesmo


Coisa linda de Caio Fernando Abreu.

Eu aqui na varanda, montanhas de tarefas, e pensando nas minhas securas e incompreensões sem pistas. O livro ali, a me fazer companhia para a travessia desse deserto. O sol forte, algumas miragens, algumas despedidas. A areia quente, as noites frias. A solidão.

Onde estou? Talvez esteja mesmo seca, Caio. Obrigada pela companhia.

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"Tinha secado: esse era talvez o ponto. Não a palavra exata, que já não tinha essas pretensões, mas a mais próxima. Sabia pouco a respeito de árvores, ou sabia de um jeito não-científico, desses de tocar, cheirar e ver, mas imaginava que o processo interno de ressecamento começasse bem antes da morte aparecer no verde brilhante das folhas, na polpa dos frutos ou na casca do tronco. Não era evidente nem externo ou explícito o que padecia. E padecia? perguntava-se detalhando os traços com as pontas dos dedos, nada que revelasse na umidade da boca ou num contorno de nariz — uma dor? Não era assim. Gostaria de voltar atrás, com sentimentos curtos e claros feito frases sem orações intercaladas, iluminar aos poucos, um mineiro, uma lanterna, o poço fundo, uma linguagem? A unha batia contra o dente. Contatos assim: uma coisa definida chocando-se com outra definida também. E não só contatos, emoções, linguagens.

Quase analfabeto de si mesmo, sem vocabulário suficiente para explicar-se sequer a um espelho. Não queria assim, esses turvos. Não queria assim, esses vagos. Sem nenhum humor. Sem nada que pulsasse mais forte que o frio cuidado com que desordenava-se, um gole disciplinado de vodca quando alguma corda do violino rebentava em plena sinfonia e, no meio do palco, impossível deter o acorde. Unicamente imagens assim lhe ocorriam, essa coisa das árvores, das gramáticas, das minas, dos concertos. Elegantemente, sempre. As luvas brancas, as longas pinças esterilizadas com que tocava sem tocar o todo, o tudo e o si. Um vício que lhe vinha quem sabe da mania de ouvir música erudita, mesmo enquanto apenas vivia, antes os fones nos ouvidos que os gritos na vizinhança. E por mais que afetasse um ar de quem lentamente cruza as pernas em público, puxando com cuidado as calças para que não amarrotassem, saberia sempre de sua própria farsa. Tão consciente- mente falsa que sua inverdade era o que de mais real havia, e isso nem sequer era apenas um jogo de palavras.

A grande mentira que ele era, era verdade. Ou: a mentira nele nunca fora fraude, mas essência. Seu segredo mais fundo e mais raso, daí quem sabe a surpresa branca de quando ouvira um quase-amigo dizer que não passava de uma personagem. Prometera-se sentimentos sem intercalados, mas sentia agora uma necessidade de explicar ao ninguém que superlotava sua constante platéia, com ele sempre fora assim: quase-amigos, nada de intimidades. Mas voltando atrás no ir adiante: uma surpresa quê. Não, não uma surpresa quê. Uma não-surpresa surpreendida, pois como e porque se fizera visível e dizível naquele momento o que nem sequer alguma vez escondera? Perdia-se, não eram teias. Nem labirintos. Fazia questão de esclarecer que sua maneira torcida não se tratava de estilo, mas uma profunda dificuldade de expressão. Por esse lado, quem sabe? As emoções e os pensamentos e as sensações e as memórias e tudo isso enfim que se contorce no mais de-dentro de uma pessoa — tinham ângulos? Havia lados mais como direi? Fragmentava-se: era os pedaços descosturados de uma colcha de retalhos. Pedia atenção aqui, por favor, mais por gestos, entonações ou simplesmente clima, e regirava: era os retalhos, um por um, não a colcha, ele. Desde o xadrez vermelho ao cetim roxo sem estampa, e assim por diante, todos. Quase parava de aborrecer-se então, como quem troca súbito uma peça para violino e cravo por um atabaque de candomblé. O leve tédio suspenso como poeira espanada logo voltava a desabar. O bocejo era a compreensão mais amarga que conseguia de si mesmo. E posto isso, cabia a seguir qualquer atitude desesperada como casar, tentar o suicídio, fazer psicoterapia ou um concurso para o Banco do Brasil.

Localizava-se, mais fácil assim, dando nome às coisas. Um entusiasmo tênue como o gosto de uma alface. Isso, estar, ser. Uma vontade de interromper- se aqui, paladar estragado pelo excesso de cigarros tentando inutilmente dar um nome ao gosto que fugia entre os dentes. Em algum quarto, há muito não sabia de línguas no seu corpo, ou tão sabidas tinham se tornado que. Vacilava entre a certeza quase absoluta de estar alcançando qualquer coisa próxima de uma sabedoria inabalável, alta como um minarete, gelada como um iceberg — melhor assim: uma montanha de compreensão sem dor de todas as coisas. Ou, talvez o ponto, nem icebergs, nem minaretes — mas árvore. Inventava com os olhos no ar vazio à sua frente um verde copado de sumarentos frutos, como se diria num outro tempo, se é que alguma vez se disse, dizia sim, dizia agora, desavergonhado e frio. Verde copado de sumarentos frutos. Folhagem de seda lustrosa. Tronco pétreo ancestral. O seco invisível como verme instalado no de-dentro. Impressentível, sob a casca, caminhando lento, questão de tempo, apenas, e semente contendo o galho crispado, mão de bruxa, roendo. Tinha dois olhos duros. Dois olhos grandes de quem vê muito, e não acha nada. Tinha secado, era certamente esse o ponto. Nunca a palavra exata, esclarecera de início. Já não tinha mais essas pretensões."

E na foto um pouco das minhas paisagens secas do cerrado.