terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Quero ser tambor


Nessa terça-feira especialmente difícil, encontro José Craveirinha - esse grande poema Moçambicano que nos deixou há alguns anos.

Emociono-me com cada letra, no pulsar de seu desejo de ser tambor.

Seu José, hoje também quero ser tambor, e viver as lembranças que remontam a sua terra de pele curtida ao sol.

Meus pensamentos pulam confusos e desejo, apenas, a batida crua de ser tambor.

Não querer, não arder, não resolver, não desafiar. Nada!

Apenas receber as mãos quentes que impulsionam as batidas ritmadas e a alegria de se fazer música.

A alegria de louvar e agradecer.

A alegria do choro comovido libertado depois de tantos anos.

A alegria de ser um único e propulsor tambor, capaz de traçar uma rota invisível de fé e esperança.

É para lá que estou indo.

E deixo um momento que captei no Fórum Social Mundial, ainda com a minha velha Pentax...

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Tambor está velho de gritar

Oh velho Deus dos homens

deixa-me ser tambor

corpo e alma só tambor

gritando na noite quente dos trópicos

Nem flor nascida no mato do desespero

Nem rio correndo para o mar do desespero

Nem zagaia temperado no lume vivo do desespero

Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra

Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra

Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu

Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala

Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra

Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Oh velho Deus dos homens

Eu quero ser tambor

e nem rio

e nem flor

e nem zagaia por enquanto

e nem mesmo poesia.

Só tambor ecoando como a canção da força da vida

Só tambor noite e dia

dia e noite só tambor

até a consumação da grande festa do batuque!

Oh velho Deus dos homens

Deixa-me ser tambor!

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Sensibilidades sem governo


E hoje esse poema da Adélia Prado me cai como uma luva, encaixando-se em minhas esquisitices e sensibilidades desgovernadas de ser mulher:


Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai,
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.

Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz pra cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
para chorar, chorar e chorar,
requintada e esquisita como uma dama.

E na foto, que tirei em Santos, o farol da minha infância que já não existe mais. Caiu, derrubado pelos anos e pela erosão da maresia. Hoje resta apenas a lembrança dessa paisagem do canal 6, com seus olhos voltados para a vida praiana.

Vontade de chorar o farol da minha infância, coisa totalmente sem governo...

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

mamãe coragem


Ser mãe
É desdobrar fibra por fibra
Os corações dos filhos

Já disse sabiamente Torquato Neto, na sua famosa composição "mamãe coragem".

Pois é mães, é preciso coragem. Desbravar o universo intenso de emoções e questões que é gerar e criar um filho, é tarefa das mais sólidas. É tarefa de uma vida. Sorrio ao pensar que estou nessa, com todos os pesares e alegrias. E com todos os mistérios dos quais somos feitos.

O cansaço do corpo me lembra que envelheço - ao mesmo tempo em que a circularidade do tempo me ensina rejuvenecer. E rejuveneço ao sentir esses dois olhinhos que me olham firmes e vibrantes, e que me chamam de mãe frente à descoberta do mundo.

Coragem sim, coragem. Para cada passo que nos leva adiante.

E deixo essas linhas com outro poema de Torquato Neto - Cogito, no qual me cogito frente à imensidão do desconhecido.

eu sou como eu sou

pronome

pessoal intransferível

do homem que iniciei

na medida do impossível


eu sou como eu sou

agora

sem grandes segredos dantes

sem novos secretos dentes

nesta hora


eu sou como eu sou

presente

desferrolhado indecente

feito um pedaço de mim


eu sou como eu sou

vidente

e vivo tranqüilamente

todas as horas do fim.

E a foto plácida que tirei do anoitecer em Pinguinguaba me lembra do vai-e-vem das ondas, que segue infinitamente vindo de um horizonte sem endereço.