terça-feira, 20 de outubro de 2009

brasileiro que nem eu


Descobrimento

de Mario de Andrade

Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu.


E esse na foto é o seu Binu - que no norte de Minas Gerais, onde o conheci e o fotografei, me ensinou que somos todos brasileiros, nessa vasta terra de diferenças, desigualdades e riquezas culturais.

a dura e necessária solidão


Nesses tempos muito tenho pensado sobre solidão, amor, relacionamento. Sobre conjugar o eu, meu, com os outros eus. Esse meu eu cheio de vontades e facetas. E os outros eus com demandas e expectativas - justas expectativas - apontadas em minha direção. Encanto-me e assusto-me, ao ver o tamanho do desafio.

Muito venho pensando sobre ser, verdadeiramente. Sobre realizar os próprios impulsos e vocações, rumo ao lugar no qual apenas nos cabe. A cada um, individualmente, nessa dura e solitária viagem em direção a nós mesmos. Necessária para que se possa voltar - só assim inteiro, para o convívio com o mundo.

Venho vivendo. Imersa em afazeres e cuidados que se multiplicam. Imersa em mim e nos que hoje me cercam com tanta intensidade. Disputo-me, com pressa de entender algo que ainda não alcanço. E sempre regida pela martelada seca do tempo que corre, e que vê crescer os amores que me compõem.
Compartilhar, sem me perder de vista: eis o grande desafio.

E, em meio a tudo isso, encontro o Rilke. O Rilke maduro, que no final da vida escreve no livro "o testamento", e nos deixa de presente:

“...
E mesmo mais tarde, mesmo agora, mesmo nestas últimas semanas, não acedi à consciência de minha natural solidão, o único meio de me tornar senhor de mim mesmo. Meu coração deslocou-se do meio de seus círculos em direção à periferia, para o lugar mais perto de ti – por mais que aí ele seja grande, sensível, jubiloso ou timorato, não se acha em sua constelação, não é o coração da minha vida.
Em nossos momentos mais doces e talvez mais justos, amada, asseguraste-me que podias abarcar todos os tipos de amor por mim. Ah, controla-te,..., resume-te àquela que, tenha o nome que tiver, assegura a minha vida, fortalece-me como pode. Não posso escapar de mim mesmo. Pois se eu desistisse de tudo, tudo, e me atirasse cegamente a teus braços, como por vezes desejo, e aí me perdesse, terias contigo alguém que houvera desistido de si mesmo: não seria a mim que terias, não a mim.
Não sou capaz de dissimular e me transformar. Exatamente como na minha infância, diante do violento amor de meu pai, ajoelho-me no mundo e peço indulgência àqueles que me amam. Sim, que me poupem! Que não me consumam para a própria felicidade, mas me assistam a fim de que se desenvolva em mim aquela felicidade mais funda e solitária. Sem a grande demonstração dessa felicidade, por fim, não me haveriam de ter amado”.

Sábio Rilke.

Estudo suas palavras, que me aliviam a alma.

E a foto que tirei na praia de Tibau do Sul - Rio Grande do Norte, hoje me lembra do mar - com aquela boa saudade de olhar a vida que vai e vem, infinitamente.




quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Hermético


Quem fala que sou esquisito, hermético
É porque não dou sopa, estou sempre elétrico
Nada que se aproxima, nada me é estranho
Fulano sicrano e beltrano
Seja pedra, seja planta, seja bicho, seja humano
Quando quero saber o que ocorre a minha volta
Ligo a tomada, abro a janela, escancaro a porta
Experimento tudo, nunca me iludo
Quero crer no que vem por aí, beco escuro
Me iludo
passado presente futuro
Viro, balanço, reviro na palma da mão o dado
Presente futuro passado
Tudo, sentir de todas as maneiras é a chave de ouro do meu jogo
É fósforo que acende o fogo da minha mais alta razão

de Jards Macalé/Waly Salomão
e na foto eu, Capi (no violão) e Luíza (comendo melancia).
Essa música me acompanha há bastante tempo, no rol das letras que me traduzem - um pouco. A primeira vez que ouvi, na voz do Macalé, senti um arrepio.
Como se quisesse dizer exatamente o que ouvia, por caber tão bem em mim.
Os poetas sabem - e como sabem, encontrar as palavras certas para trazer à tona sentimentos, sensações e questões que estão guardadas lá no fundo, e precisam sair.
Por isso usamos sua voz, e suas palavras, para soltarmos algumas coisas que não estão na superfície.
Eu uso. E faz um bem danado respirar ar puro.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Se cada dia cai


Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.

há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.

Pablo Neruda (Últimos Poemas)

E a foto é minha, na chapada dos veadeiros. 2007-2008.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Que este amor só me veja de partida


Nessa terça-feira árida, socorri-me da sensatez de Hilda Hist, com seu amor áspero e cristalino.

E a foto que tirei na praia da pipa, Rio Grande do Norte, me fez percorrer um longo caminho até chegar a mim mesma - presa no presente e sentada na sala escura. Quero colo!

-----------------------------------------

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.