segunda-feira, 23 de maio de 2011

Uma breve história de conchas



Era uma tarde daquelas reluzentes do cerrado.

Os amigos reunidos para comemorar uma data especial de aniversário. 4 anos, barrigas, bebês, aquela esperança boa que vibrava nas vidas que ainda estavam por vir. Nas novas vidas que ainda seriam descobertas dentro de cada um de nós. 

Sol e Be se viram depois de alguns dias de distância. Os dois logo se conectaram como irmãos que tem tanto para conversar e descobrir ao longo do dia. É bonito ver como conversam. Como trocam as grandezas que encontram nas miudezas de seus mundos de meninos de pés no chão. Como o diálogo acontece quase sem querer, como quem respira o mesmo ar dentro do peito. Como os significados de seus achados dialogam, e formam conhecimentos conjuntos.

Gosto de acompanhá-los assim à distância, observando o que acontece quando estão juntos. Meu olhar fica ali ao redor, compartilhando seus aprendizados com uma imensa alegria por aprender também. Por aprender a olhar com novos olhos as mesmas velhas formas que me permeiam.

Nesse dia eles encontraram conchas no parque de areia. Be pegou todas que conseguiu enxergar com as mãos despertas. "Mamãe, o que essas conchas fazem aqui?", ele perguntava curioso. "O lugar delas não é aqui! como vieram para cá?". Ele ficou realmente incomodado com a descoberta das coisas fora do lugar.

A ordem das coisas está cheia de desordem filho. Vivemos permeados por desacertos. E tudo bem. Tudo bem as conchas estarem aqui. Tudo bem estar fora do lugar. Tudo bem também inventarmos novos lugares, novos abrigos para coisas diversas. A Sol parecia concordar comigo. Ela gostava de ter as conchas ali perto, como se fossem dela. Como se pertencessem àquele exato lugar onde se encontravam, mesmo que não fosse o lugar onde deveriam estar.

Abrigamos, então. Juntamos todas num copo, cheias de areia e de indagações brandas. De indagações de quem vive atento. Mas o Be não se sentia feliz com as conchas ali naquele lugar improvisado. Ele ficou sisudo, com olhar sério. Queria levá-las de volta ao mar. Elas precisavam voltar para a casa delas, para onde faziam sentido.

Estávamos na beira do lago, e o lago virou mar. Aquele mar grande-mundo, aquela imensidão disforme e cheia de vida. Levamos as conchas descalços, beirando a água gelada com vento bom. Eles queriam molhar os pés. Sentir o arrepio vivo daquilo que viam. E molhamos, arrepiados. 





Ficamos ali contemplando o desconhecido, por um tempo sem tempo. Fitando o destino escuro das conchas que sairiam de nossas mãos para nunca mais voltarem as mesmas. Suspirando a despedida do momento passado que nunca mais voltaria o mesmo. Despedida da vida que segue para onde deve seguir, e nem sempre leva junto o que desejamos levar na bagagem. 

O Be e a Sol dividiram as conchas. Uma a uma pingaram na água, mergulhando no lugar de onde vieram. Parecia certo jogá-las de volta ao lago vestido de mar. O Be sorria, feliz em devolvê-las para a sua vida marinha. "Agora elas vão encontrar os seus irmãos e irmãs, sua família Sol!" - ele exclamou. A Sol voltava calada. Voltamos calados, enfim. 



Até que ela olhou algo no chão de areia: outra concha! "Olha Be, outra concha, outra concha!", gritava animada. Mas o Be não gostou do achado. Ele não gostava de descobrir que sempre haveriam conchas fora do mar. A Sol, por sua vez, não pensou duas vezes: agarrou-se na concha. "Agora ela é minha Be!". 

Ele teve um verdadeiro ataque raivoso, daqueles de bater o pé no chão. "A concha não é sua Sol, o lugar dela é no mar!". "Mamãe a Sol não quer jogar a concha de volta ao mar!" - chorava ele sentido, derrubando lágrimas inconformadas. Filho, deixa a Sol ficar com a concha. Ela quer sentir um pouco o que é ter uma concha junto de si. Deixa ela sentir. Ele pensou, pensou, investigou terrenos, mas não se convenceu: "não, não isso não é certo!", emburrava-se.

A Sol apertava a concha nas mãos. A concha pequena dentro de suas mãos pequenas. A concha acalentada pelo seu mundo novo, pelo mundo dela, por ela que era concha também. "Sil, a concha não tem olhos e nem boca. Ela não pode ter irmãos e irmãs. Ela não é como a gente", afirmava a Sol, querendo convencer-se de que a concha agora deveria seguir com ela.  Que ela lhe emprestaria olhos e bocas de gente. Que ela lhe supriria as faltas que sentiria nesse mundo que não era o dela. 

O dia seguiu. O Be ainda bravo, esqueceu-se um pouco do mundo das conchas em meio a outras brincadeiras e docinhos cheios de açúcar. A tarde caia, e a gente ia se despedindo com a lua que começava a aparecer naquele horizonte sempre aberto. 

De repente a Sol chegou perto do Be. Pegou na sua mão com delicadeza: "Vamos Be, vamos jogar a concha de volta ao mar". "Isso Sol!!", ele esbravejou! Foram os dois de mãos dadas, os dois juntos com a concha acalentada. Era hora. Ela estava pronta para despedir-se da concha que, de fato, não era dela. "É, Be, você estava certo. A concha deve voltar para o mar", ela falava em silêncio enquanto se dirigiam para o mar inventado. 

Ela só precisava de seu tempo para dizer adeus. Precisava conviver um pouco com aquilo que precisava ir. Precisava senti-la por entre seus dedos, e guardar na memória o que era ter uma concha só sua. O que era ter uma coisa de mar junto de si. Precisava do seu próprio tempo para decantar e para deixar ir. E a concha foi. Num só gesto, certeiro, ela desprendeu-se de suas mãos e mergulhou de novo no mar. 



E os dois voltaram ainda juntos, correndo pelos arredores, felizes com a empreitada que realizaram de mãos dadas. 

Eu continuava acompanhando tudo com o coração pulsando. E pensava no dia em que eles encontrariam novas conchas e novas oportunidades de viver e de se despedir do que precisava ir embora. No dia em que de novo sentiriam o que é ter algo que deve partir para o desconhecido. 

Pensava também nas minhas próprias conchas guardadas, que precisavam voltar para o mar. No que precisava desgarrar das minhas mãos atrapalhadas. No meu tempo de deixar ir o que precisa ir. O que, de fato, não cabia aqui junto de mim. 

E eu vou. Quando estiver pronta. Quando conseguir dar o passo em direção ao mar, e me despedir das conchas para nunca mais.

Obrigada meninos, pela grande partilha de coragem. 

As fotos são minhas também. Registro emocionado de uma mãe-aprendiz. 

Um comentário: