sexta-feira, 21 de maio de 2010

minha vertigem clariciana


Era como se estivesse, enfim, nua. Nua e só, diante de um imenso abismo. Sentia a vertigem, à beira do barranco, e meus pés fincados no chão. Mais um passo, e era o pulo. Os pés latejavam, ardiam. Eu sempre tive uma relação de atração e repulsa com as vertigens, e esse magnetismo vibrava com uma intensidade eletrificada. Tremia de medo, e me aproximava do escuro. Busquei alguém, uma voz, um ombro, uma lanterna mas, esse pulo só se dá sozinha - e no breu. Não se pode iluminar o que está por vir, não há lanterna que alcance o desfecho da queda.

Chorei um choro sentido, por dias e dias. Um choro inconsciente, de raízes profundas. Lavei os cabelos e guardei a água que sobrou. Foi ela que me nutriu nos tempos de náusea. Eu estava longe, longe, e via meu filho apenas com os olhos do amor. Sentia com os poros, com as pontas dos dedos, com os ouvidos aguçados para os sons que vem de dentro. Se fosse possível descrever, diria que estava em outra dimensão temporal. Mas toda descrição é efêmera. E o medo é um vulto enorme de garras afiadas.

Quem era eu, enfim? O que é o ego diante desse imenso buraco fosco? Não sabia mais o que me compunha, até que me acostumei com o medo de não saber. Ele passou a ser um aliado. Com os olhos fechados, e envolta pelo medo companheiro, desgarrei os pés do chão. Os pés estavam quentes, e o ar gelado impulsionou o passo. Pulei. Um único e certeiro pulo. Um só minuto e lá estava eu, escorregando pelo buraco de mim mesma, pulsando em queda livre.

E a queda tem sido lenta. Às vezes me agarro em alguns galhos de árvores que me remetem a terra firme. Mas não temo mais a vertigem, vivo-a. Espero chegar em pé sobre as duas pernas - pernas firmes para trilhar um novo caminho mais cheio de mim mesma.

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Na foto está a Tati, uma menina muito querida, em nossa viagem vertiginosa pelo interior do Brasil. Tirei no alto da Serra da Capivara - Piauí. E abaixo, deixo um trecho da Clarice Lispector, que faz eco interior nesse momento:

"Os rituais eram as minhas muletas de aleijada. Mas eis que resolvi jogar para longe de mim, e se perderam no espaço infinito de Deus, as muletas. Morri de medo de cair e nunca mais poder me levantar. Como viver sem os rituais da vida? Sem os hábitos? Então, de dentro de meu medo, surgiu-me uma mulher de pé sobre as duas pernas, e esta mulher era eu - eu sozinha. E foi sozinha que dei os primeiros passos. Trêmula de medo diante de minha ousadia e solidão. Então resolvi criar em mim a nudez. E uma certa luz de verdade nasceu em mim. Não sei dizer qual era a verdade. Era apenas luz de visão, apenas, mas para mim mesma suportável".


6 comentários:

  1. Poxa, Sil, você escreve maravilhosamente bem, como é bom ter escritos como o seu para a gente se deliciar, é muito bom mesmo!
    Gostei dessa parte aqui:

    "Busquei alguém, uma voz, um ombro, uma lanterna mas, esse pulo só se dá sozinha - e no breu. Não se pode iluminar o que está por vir, não há lanterna que alcance o desfecho da queda."

    Sil, vc tem a alma dos poetas, falou tudo que eu queria dizer, definitivamente, vc é uma pessoa iluminada!
    Beijos!

    Jarbas.

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  2. Sem asas, corrimão, estilo, mão,
    ombro, palavra, sinal...pula-se... assombrosamente renascemos libertos.

    Uma pequena historinha Zen:

    "...Um monge fugia de um urso selvagem quando sem saída pulou num despenhadeiro. Agarrou-se a um pequeno arbusto de amoras. Ao olhar para baixo viu que tigres famintos o observavam. O frágil arbusto aos poucos ia cedendo ao peso. Antes que o arbusto se despregasse das pedras viu uma amora, a comeu."

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  3. Uau, que texto lindo!!

    Jarbas, concordo plenamente contigo: nossa amiguinha escreve muito-muito-muito bem.

    Belê, parabéns pelo texto e pelo poder de transformar a dor em arte ou como diria Cazuza, "o tédio em melodia".

    Particularmente, adorei a seguinte parte "Chorei um choro sentido, por dias e dias. Um choro inconsciente, de raízes profundas. Lavei os cabelos e guardei a água que sobrou. Foi ela que me nutriu nos tempos de náusea,"
    Bjus

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  4. Há mergulhos inevitáveis, né amiga?
    Só quem mergulha entende a queda da Alice no oco da árvore e o confronto dela com os espelhos.. Só quem mergulha conhece a temperatura real da água, conhece o equilíbrio que paira no vazio, conhece a arte de não controlar, sendo sem ser.
    Bonsmergulhos Sil, não tem como não sair melhor daí!
    Bj nos pés

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  5. nudez boa, essa.
    faz a vida valer a pena.
    o cair da máscara, quebrando-se com ruído oco.
    assusta, dói, escancara. mas também agiganta.
    bjo grande, flor.

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  6. Sei que todo salto pro vazio,é uma aventura,às vezes machuca,mas ás vezeste salva.Gostaria filha de como qdo vc era criança( a minha criança)eu pudesse sempre te resgatar, nessas tuas quedas livres.Beijão da mãe

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